Muitas das ideias que as pessoas fazem de temas “técnicos”, como os de economia, urbanismo, mercado imobiliário, tributação etc., parecem completamente desprovidos de um fundo ideológico. Portanto, parecem desprovidos daquele fundo de senso de motivação vinda de ideais, motivação que faz parecer valer a pena sequer se inteirar minimamente desses assuntos para além de uma exigência enfadonha passageira. É assim que é possível encontrar proprietários de imóveis no Brasil, cujo imóvel vale mais que um milhão de reais, e que têm pouco interesse nesses assuntos técnicos, ou familiaridade com os mesmos; podendo tais proprietários estar incertos de se têm o imóvel registrado em cartório etc.; mesmo no contexto de procurarem comprar ou vender imóveis e fazer na esteira disso ou nesse contexto cálculos de investimento. É algo curioso, mas nem por isso menos real.
Por mais que o aparente estado de coisas seja lisonjeiro à expectativa não-ideológica comum (ou à expectativa não-ideologista comum, como o queira) do setor imobiliário; e eu aqui defino esse estado de coisas aparente como o esvaziamento ideológico ou o estar desprovido o setor imobiliário de um sentido ideológico significativo; existe um tremendo e avassalador fundo ideológico, com raízes históricas, por trás deste setor. Com efeito, em retrospectiva, pouca coisa poderia estar posicionada de modo mais central em termos ideológicos no contexto brasileiro.
Com um recuo histórico, a camada mais ideológica do setor imobiliário deve ficar bem evidente sem muito tardar.
Segundo discutem certas fontes, como o portal Caos Planejado etc., o surgimento dos cortiços no Brasil se associa, no séc. XIX, à classe de ex-escravos em crescimento e ao recebimento de imigrantes portugueses pobres. Os cortiços eram alojamentos locatícios que comportavam muitas unidades de moradia com espaço reduzido, em uma única edificação, com uma condição de higiene precária; por exemplo, sem choveiro ou descarga nas unidades (sistema hidráulico).
O autor brasileiro que se destacou por descrever a situação dos cortiços emblematicamente, em um romance dito naturalista, foi Aluísio de Azevedo. Azevedo foi a contraparte brasileira de um movimento literário chamado “naturalismo”, que teve na sua versão francesa (no autor Émile Zola, por exemplo) uma influência relativa mas real do socialismo utópico, e das preocupações típicas deste movimento com a condição de trabalho dos trabalhadores industriais etc. Ora, o socialismo utópico é uma ideologia com dois “princípios” destacados; uma delas, proposta pelo socialista utópico Charles Fourier, é a ideia “da transformação como lei universal”, A segunda ideia é a de que a pressão que a evolução ou transformação exerce sobre as pessoas realça uma certa falta de autonomia nas pessoas, elas estão tateando no escuro sob o efeito das transformações nas quais estão imersas, e assim devem ser vistas como classes que são dadas à luz pela história. O próprio Émile Zola, modelo no qual se baseia Aluísio Azevedo, é considerado um crente na “evolução”.
Como uma característica significativa do naturalismo de Azevedo, há a proposição de que a imoralidade como que coletiva no cenário urbano dos cortiços, por exemplo, o cortiço no bairro Botafogo que ele retrata no seu romance, é uma imoralidade por contágio que sobrepuja a resistência, o talvez mesmo a plena advertência individual.
Dado o fato de que o fator histórico impessoal, coletivo e evolutivo parecia mais forte do que uma intervenção individual ou institucional, em relação à imoralidade do cortiço; isso criou uma espécie de fundamento ideológico para a significativa desvalorização do cortiço em termos imobiliários. Já não era possível cristianizar ou redimir o cortiço. Isso é visto na técnica literária de Émile Zola, copiada por Aluísio de Azevedo, chamada “zoomorfização”, pela qual indivíduos ou membros de uma coletividade (por exemplo os habitantes do cortiço), são retratados com um destaque para.o seu instinto mais primitivo e grosseiro; como se eles estivessem abaixo de sobrepujar o instinto cego. E no entanto, pelo menos, segundo se diz, até o início do séc. XX, os cortiços estavam não raro nas regiões mais centrais de grandes capitais brasileiras.
Se diz que as elites brasileiras nas diferentes cidades deram fim aos cortiços promovendo políticas públicas e urbanísticas (sob o pretexto de promoção da higiene, entre outros) que expulsavam os moradores, e assim conseguiram tornar os bairros mais ricos afastados das populações pobres e ainda mais valorizados e com aparência de privilégio.
Cabe a pergunta: as elites expulsaram os moradores dos cortiços por uma ambição imobiliária e especulação do mercado imobiliário, em detrimento do bem-estar alheio; elas primariamente fizeram isso, ou elas simplesmente acreditaram nas premissas do socialismo utópico, no movimento histórico, e sua respectiva lei da evolução, e quiseram e escolheram evitar o contágio com a realidade do cortiço como uma medida evolutiva de auto-preservação da degradação? Não se deve esquecer que ideias eugênicas, que significam basicamente ver as coisas sob o ponto de vista do preferir a não perpetuação genética das/do não ter descendentes as pessoas indesejáveis, são precisamente ideias afins, tanto ideológica quanto historicamente, com os ideais de Zola e do socialismo utópico a respeito de uma lei evolutiva que tem uma importância central.
Poucas pessoas aparentemente sabem (conforme foi mencionado por estudiosos como Margaret A. Fay e David McLellan) que Karl Marx se ofereceu a Charles Darwin para dedicar o livro O Capital (ou um dos volumes) a Darwin, porque o materialismo histórico de Marx (na promoção do ideal socialista) correspondia no domínio histórico à evolução das espécies darwinista no domínio natural. Se a teoria da evolução é a respeito de como as espécies menos adaptadas são suprimidas através da seleção natural, a teoria marxista é a respeito de como as formas sociais se sucedem umas às outras rumo a um aperfeiçoamento a despeito de, e precisamente por causa de, serem formas sociais aflitivas e crescentemente conflituosas (como em dores de parto). A ideia da importância da seleção social e evolução na mentalidade socialista é tão marcante que pode ser encontrada sem dificuldade nas ideias políticas de um esquerdista britânico como George Bernard Shaw.
Dessas considerações segue a conclusão, um tanto surpreendente, de que as idéias naturalistas irreligiosas de Aluísio Azevedo e Émile Zola, têm o efeito elitista (ao menos potencialmente) de acirrar uma irreconciliação moral e mesmo espacial/imobiliária entre as elites e o povo mais carente. Se antes elites e classes baixas se sentiam diferentes, depois se sentiram diferentes e distantes. O membro da elite brasileira, hoje (ou desde as reformas urbanísticas começadas no início do século XX), para saber como vive o trabalhador pobre médio, precisa se disfarçar entre eles, como o Rei Henrique V entre os seus soldados desencorajados, na véspera da Batalha de Azincourt.
As evidências aparentes dos efeitos da mentalidade socialista-utópica no setor imobiliário brasileiro se prolongam na instituição que é a chave-mestra para entender este setor no Brasil, a Caixa Econômica Federal. A prova disto está na maneira com que o subsídio imobiliário da Caixa é tão forte, e tão pouco advertido.
Lembrando, as duas características do socialismo utópico anteriormente destacadas são, a da transformação como lei histórica e na verdade lei universal; e da gestação das pessoas como carregadas, como um feto, sobretudo pelo próprio instinto, no se guiar confusamente imersas na gestação das transformações históricas.
A taxa de juros da Caixa Econômica Federal em financiamentos imobiliários gira em torno de até três quartos (75%) da taxa de juros média entre os bancos principais (de 11,32% aproximadamente). Portanto, é bem menor. O programa Minha Casa Minha Vida, antes chamado por um tempo Casa Verde e Amarelo, chegou a aprovar financiamentos por 4,25% e 4,5%, o que é bem menos que a metade da taxa de juros média de mercado atual a 11,32% aproximadamente (em financiamentos). Em adição a isso, através do mecanismo jurídico-institucional do chamado SBPE, Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo; uma extraordinária parte (mais da metade) dos valores depositados em caderneta de poupança por usuários privados de bancos tem necessariamente de ser usada (se os bancos optarem por usar esses depósitos) para financiamentos imobiliários; e aparentemente na maior parte desses casos a Caixa Econômica é quem realiza esses financiamentos. A Caixa também utiliza para se auto-financiar dos fundos do FGTS tirados do saldo do trabalhador celetista, que rendem ao trabalhador metade do rendimento da caderneta de poupança, aproximadamente, assim permitindo à Caixa embolsar e reinvestir a diferença com um efeito multiplicador exponencial.
Se trata de um imenso esquema jurídico-financeiro de extração de recursos da sociedade civil em geral, afunilada para o subsídio de uma operação financeira bem específica, o financiamento imobiliário residencial. A premissa por trás desse gigantesco transferir recursos de modo preestabelecido com o subsídio do contribuinte, é a premissa do socialismo utópico da sociedade como povoada de pessoas imersas em um estado de constante transformação e gestação, guiadas sobretudo pelo instinto (como na “zoomorfização” da técnica literária de Émile Zola), que precisam ser como que ordenadas por fatores subliminares não muito conscientizados (poucas pessoas seja entendem a razão de ser do FGTS ou todos os meios de ação permitidos pelo mesmo). E o fato de que essas políticas subliminares, isto é, políticas que operam silenciosamente, são tão subliminares, é que elas parecem ser incapazes de dar uma resposta consciente definitiva ao desafio da lei universal da transformação.
Obs: Não se trata de negar, conforme apontam certos números, que com a intervenção da Caixa o déficit habitacional brasileiro foi diminuído desde pelo menos o início do séc. XXI, mas cabe o questionamento a respeito de se isso ocorreu otimizadamente.
Nesse sentido o incentivo estatal à habitação, pela Caixa e o SBPE, de um lado, e a expulsão das gentes pobres dos cortiços (sob pretextos que pairam como equívocos ou escondidos), de outro, por mais paradoxal que isso seja; são fenômenos estranhamente parecidos no fundo: se trata nos dois casos de uma resposta não clara, não direta e não definida, portanto implicitamente falhada e auto-contraditória, ao desafio particular de encontrar uma resposta universal.
Assim, como se quis demonstrar no início do texto, o setor imobiliário brasileiro se baseia em um drama profundamente ideológico e existencial.